quarta-feira, 22 de abril de 2020

Querida, tive uma recaída... (essa sim é uma carta romântica!)

So Now? by Charles Bukowski (read by Tom O'Bedlam) - YouTube
- Meu bem, estou sentindo falta de sexo - e abriu outra cerveja.
- Linda, tu sabes que o álcool demora dez minutos para chegar ao cérebro, não sabe?
- E o que tens isso, meu bem?
- Está muito cedo para dizer essas coisas.
- Meu bem, notei que tens mudado tua maneira de escrever. Estou certa?
- Acredito que sim, linda.
- Foi proposital, meu bem? Tens mudado de propósito?
- A gente nunca muda de propósito, querida, sempre existe algo que nos faz mudar. O amor é um belo exemplo de como a gente sempre muda.
- Ou como a vez que mudei de assunto porque teu pau só tem apenas o toque de tuas próprias mãos nesses tempos e isso está te deixando louco?
- Como você é suja, querida. Te admiro por isso.

Como faz para começar uma carta romântica?
O que eu devo fazer para escrever coisas românticas?
Eu deixei para trás todo esse melodrama em que não me encaixo mais e esqueci como faz para suportar tais coisas.
O que a gente deve fazer quando estamos trancafiados?
O que a gente deve esperar?
Sentir?
Ter?
Sonhar?
Amar?
Querer?
Quem se importa com o amor quando a gente não pode nem sair de casa?
Seria egoísmo ou bobeira o suficiente pensar que estou disposto a amar alguém mesmo sem poder sair do meu próprio quarto?
Com certeza seria. E vou limpando o meu quarto que me deparei em todas as coisas que eu deveria esquecer. Fotografias. Cartas. Lembranças. Roupas. Tralhas. Garrafas de cerveja de um tempo em que eu sofria por amor. E todas aquelas recordações de um tempo em que eu acreditava estar feliz ao lado de alguém. O triste é perceber que isso já não incomoda tanto como um dia incomodou. E essa dor contida no peito de quem um dia amou, é diferente da dor que costumava bater quando a gente acreditava que nada disso aqui dentro teria um fim.
A dor do amor vai e volta, cabe a nós mesmos decidir a intensidade dela.
Quando a gente sorri lembrando de coisas boas é que a gente já não se importa tanto quanto as vezes que derrubamos lágrimas por causa de outro alguém. E tudo bem chorar. E tudo bem sorrir. E tudo bem sofrer. E tudo bem ter o peito apertado lembrando de algo bom. É natural. É extraordinário. E não existe nenhum mal nisso. Tudo bem se entristecer ao lembrar de momentos ruins. Tudo bem chorar ao lembrar de dias ruins. Tudo bem abaixar a cabeça e pensar que poderia ter sido diferente e acreditar que todos os dias que passamos ao lado de outra pessoa foi em vão, mesmo que a gente saiba que não foi. Mesmo que a gente saiba que algo dali se encontra aqui dentro e nos fez crescer de alguma forma. Tudo bem sentir. Tudo bem. Não existe mal nenhum em amar. Não existe mal nenhum em sonhar com o amor perfeito. Ninguém irá te julgar por isso. Triste é a pessoa que ama e finge que não sente nada. E talvez eu tenha me tornado essa pessoa, aquela que ama, mas que finge que não sente nada. E eu esqueci do momento exato em que comecei a ser assim, mas também não tem problema. Toda forma de fugir do amor é uma blindagem por conta de coisas que passamos lá atrás e que não queremos passar de novo. Por mais tolo que seja teus atos, uma hora o amor te pega. E tu se perde. E tu se esconde. E olha para o céu. E olha para os lados. E não acha a saída perfeita para lidar com tudo que está pulsando dentro de você. E tudo bem a gente se sentir assim. Um sorriso, muitas vezes, te salva quando você está pensando no fim da linha. Triste mesmo é a pessoa dona desse sorriso não saber o que ela já tens feito por você, mas tudo bem também, meu bem. Sorrisos são perfeitos, a gente nem tanto.

Onde foi que eu parei?
Onde foi que eu me perdi nesta carta?
Eu deveria escrever algo sentimental. Aquele tipo de carta que toca na alma e que faz as pessoas se sentirem apaixonadas. Que faz com que as pessoas se lembrem dos pares românticos que elas tem por aí.
Puta que pariu, não lembro como que faz para escrever uma carta romântica.
Estamos todos perdidos dentro de nossas próprias casas e a gente percebe que todas as dores começam a fazer sentido no teu corpo.
Aquele cansaço de não ter mais o que fazer.
E a gente bebe para esquecer. A gente bebe para fingir que está tudo bem.
E a gente não pensa direito por pensar demais.
Arruma o quarto e acredita que está tudo bem lá fora.
Ajeita o cabelo. Ajeita a barba. Ajeita os quadros.
Se olha no espelho.
E a gente bebe mais.
A gente espera um sinal de que as coisas serão normalizadas, mas a gente consome tanta besteira comestível dos jornais e da TV e da internet que a gente se perde mais um pouquinho.
E a gente fica sem entender.
E sem planejar.
A gente coloca o pensamento fixo em nossas mentes de que isso tudo uma hora vai acabar. Amanhã estará tudo bem de novo. Quem sabe depois de amanhã. Mas o amanhã nunca vem. E isso martela mais ainda em nossas cabeças e faz com que a gente se sinta fraco.
Mesmo que saibamos que não somos tão fracos assim.
A gente vai para a varanda. Toma um ar na sacada. Fecha os olhos. Sente o ar. Inspira o ar. Sente o vento batendo em nossos rostos e pensa "Vai ficar tudo bem". E outras dores caem de encontro com a gente. O joelho que lateja. As juntas que não respondem tão bem assim. O cansaço repentino de subir alguns degraus da escada da garagem. Uma gordurinha aqui. Uma barriguinha maior ali. A cabeça já não aguenta mais assistir filmes e séries. Os dedos não suportam mais o contato com o controle do vídeo game. E os olhos já estão cansados o suficiente para olhar para qualquer tela possível. Ter sinal de internet te deixa entediado. E a gente vai levando. E a gente vai existindo. E inventando. E reinventando. E surtando.
Quem não surtou nesses tempos difíceis que atire a primeira pedra diretamente em meu olho esquerdo.
A gente vai até a cozinha ás dez da noite e come a primeira besteira que encontra pela frente. Quando a gente vai de volta para o quarto já são três e meia da madrugada e tu ainda nem dormiu. E a gente pensa "Eu deveria estar dormindo" seguido de um "Pra quê? Foda-se, não tenho nada demais para fazer amanhã mesmo". E a gente volta para a varanda e começa a observar o cachorro que depois dessa loucura toda começou a latir em vão, então a gente pensa "Se até o cachorro enlouqueceu, quem dirá eu?". A gente volta para o quarto e já são sete da manhã. Que tal outro episódio daquela série? Que tal ouvir uma música? Que tal curtir mais algumas fotos em uma rede social qualquer? Eu deveria estar trabalhando em alguma coisa muito importante para salvar o mundo. Eu deveria estar fazendo algo para os meus projetos futuros. Eu deveria estar produzindo coisas incríveis, mas logo em seguida a gente reflete e chega a conclusão de que a gente não precisa fazer todas essas coisas geniosas agora. Senta, relaxa, se acalma, respira. Está tudo bem não ser absolutamente nada produtivo nesses momentos de loucura e dificuldade. Estamos em tempos que não precisamos provar nada para ninguém, principalmente para ti mesmo. Se acalma!
NÃO SURTA, PORRA!!!

Onde caralhos foi que me perdi nesta carta?
Eu deveria estar escrevendo coisas incríveis sobre o amor.
Mostrar que meu coração está batendo fortemente ao lembrar de um nome.
Escrever histórias incríveis sobre como sonhar com o momento perfeito ao lado de alguém que nem sei se me quer tanto quanto eu quero ela.
Onde foi que eu perdi minhas palavras sinceras?
Onde foi que eu deixei aquela falta de ar ao saber que esse romance pode dar certo?
Espera.
Veja bem.
Uma crise de ansiedade invadiu meu peito agora e estou com uma pequena falta de ar.
Sinto falta de quando eu sentia isso apenas em momentos românticos.
Espera um pouco. Eu já volto!

- Tens ideia de como será tua próxima carta, meu bem?
- Não. Não tenho. Nunca planejei as linhas de minhas cartas. Não faço ideia do que vem.
- Como sabes que sairá algo bom?
- Minhas cartas? Minhas cartas nunca são boas, caralho. Nem eu as entendo.
- Querido, tu sabes que as pessoas não pensam isso delas, não é mesmo? Tu sabes que sempre escreve coisas boas e incríveis e lindas. E as pessoas te elogiam muito por isso.
- Meu bem, eu posso sentar na privada nesse exato momento, colocar toda essa bosta de besteiras comestíveis e cervejas para fora e ter uma grande ideia sobre qualquer porcaria e cuspi-las nos meus textos, ainda sim, as pessoas irão achar que eu sei bem sobre tudo que estou falando.
- Querido, tu faz ideia que já salvou pessoas de um surto ou momento depressivo por escrever tuas coisas logo depois de cagar?
- Não. Nunca pensei por esse lado.
- Para de fugir das tuas próprias coisas, meu bem. Bota toda essa merda para fora, se sinta bem e faça as pessoas se sentirem bem. Elas estão precisando.
- Mas eu não sou a melhor pessoa para fazer outras pessoas se sentirem bem. Nunca fui desses.
- Nesses momentos, meu bem, qualquer forma de arte salva as pessoas de suas próprias loucuras. E o que tu faz, querido, o que tu escreve, é lindo. Tu consegue deixar aquela sensação de que as pessoas não estão sozinhas mesmo elas estando na merda. Ou todos nós. Sai dessa tua caixa de tristeza e depressão solitária e mostra isso para o mundo antes que tudo acabe.
- Estas certa. Vou cagar!

Não seria egoísmo meu pensar em amor nesses tempos.
Muito menos loucura.
Ou até mesmo insanidade.
Eu já perdi todas as minhas esperanças em romances perfeitos e ainda assim espero por ele.
Não pelo fato de querer viver um sonho, mas sim pelo fato de perceber que a pureza de coisas boas é o que nos salvam em momentos trancafiados como esses.
A gente espera uma mensagem quando estamos tristes.
A gente espera uma lembrança quando estamos nos sentindo sozinhos.
A gente espera um ato de bondade quando estamos para baixo.
A gente espera um abraço a distância quando sentimos falta de nós mesmos.
A gente espera que sintam nossa falta quando estamos pensando na morte.
E tudo bem se apaixonar mesmo no meio de tanta loucura.
Tudo bem sorrir quando a gente deveria chorar.
E eu perdi o meu dom de escrever cartas românticas. Tudo bem por isso também.
Não pelo fato de que não sei mais como se faz para amar, sim por eu não sentir mais vontade de escrever todas aquelas cartas clichês na esperança de que vão me tirar do fundo do abismo em que eu mesmo me coloquei. Minha visão míope já me permite sair de um labirinto que eu fiz questão de entrar. E tudo bem se a gente não sair dele hoje.
Meu coração já tem um lugar encaminhado e, por mais que eu não saiba o caminho, me sinto bem com isso. Deixa o futuro me mostrar todas essas coisas clichês. Deixa o universo conspirar a favor de todos os meus amores e romances. Deixa a própria vida me mostrar tudo que eu deveria ou não viver. Eu já não tenho tanta vontade assim de usar todas as minhas cartas para encontrar os meus romances ou me encontrar. Eu uso meus momentos de loucura, solidão, tristeza, depressão e recaídas para escrever palavras para pessoas que se sintam no mesmo nível de perdição que eu. E se eu for capaz de ouvir delas que elas se sentiram bem com tudo que eu escrevi logo depois de cagar toda besteira comestível e cerveja empapuçada, eu me sinto muito bem de ter feito algo por elas. O meu coração já sabe o caminho para voltar para casa, mas esse gosta desse labirinto de não saber como amar. E eu já não me importo com isso também.
As mãos suadas ao receber uma mensagem.
O coração acelerado ao ser lembrado.
O peito ofegante por um convite feito as pressas.
O sorriso sincero ao lembrar que tudo pode dar certo.
Ou o frio na barriga em pensar que tudo pode dar errado.
Tudo isso faz sentido. De alguma forma, eu sei que faz sentido. E a gente sabe que faz.
Não existe nada melhor do que receber algo como "Vamos tomar uma cerveja juntos quando tudo melhorar? Quero te ver!" não te deixa outra escolha que não seja acreditar que tudo pode, finalmente, dar certo. E tudo bem se não der também.
Só deixa o universo me mostrar que minha vida amorosa é muito mais do que minhas cartas românticas que nunca serão entregues a ninguém por nunca ter um endereço certo para manda-las.

E tudo bem se eu sorrio ao lembrar do teu sorriso. Meu maior defeito não é esse.

Viu como eu ainda sei amar?
Começou a ficar meloso, não acha?
Vamos parar por aqui.
Espero que tenha entendido o espírito da coisa.

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